A literatura do desenvolvimento tem insistido no surgimento de um novo tipo de profissional a que chama, em português, "facilitador". Esta palavra é, como vamos argumentar neste texto, uma tradução menos conseguida do conceito de "broker" ou "honest broker" surgido na literatura anglofona. Mas antes entrar nesse tema, será util entender as mudanças sociais que implicaram essa redifinição do papel do planificador de desenvolvimento. (Este trabalho não pertende ser científico, apenas expressa as opiniões do autor com base numa curta experiencia profissional e leituras casuisticas dividamente assinaladas.)
Algures Beck[1] argumentou que o desenvolvimento dos últimos séculos trouxe consigo uma maior percepção do risco associado a esse desenvolvimento. O alarme da opinião publica frente ao esgotamento do petróleo, o uso da energia nuclear e, mais recentemente, frente ao aquecimento global são evidencias da situação de risco que vive a sociedade. Esta sociedade de risco é produto da aplicação do conhecimento científico ao uso dos recursos naturais de duas formas: em primeiro lugar, em resultado das consequências não previstas do uso (exacerbado) do recursos naturais; em segundo lugar do aumento da capacidade de percepção das consequências da actividade humana sobre a natureza em resultado da generalização do ensino (condição fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade assente na tecnologia). Por outras palavras, a actividade humana influi e altera, cada vez mais fortemente, "meio natural" e os indivíduos têm cada vez mais capacidade para compreender as suas implicações, ou seja, o risco associado a essa capacidade.
Para responder a este risco, a sociedade necessita de gerar plataformas de dialogo. As parcerias entre actores, com precepções do mundo distintas, que derivam tanto da sua posição social como da sua forma própria de conhecer, contribuem, segundo a tese do autor referido, para aumentar a compreensão dos processos em curso. A maior compreensão, conquistada assim pela multiplicação dos pontos de vista, torna-se a estratégia mais eficáz para reduzir o risco. Além deste, outros argumentos são frequentemente utilizados para defender os processos participados/negociados entre os distintos actores. São eles:
- A maior eficácia dos projectos de desenvolvimento. A pertinência do projecto aumenta consideravelmente quando os seus objectivos são definidos ou, melhor, resultam de uma demanda dos beneficiários. Ao mesmo tempo a apropriação do projecto pelos beneficiários/participantes tem um efeito potenciador do impacto das actividades realizadas. Um trabalho demonstrou [2] que a participação dos alunos na gestão da escola funciona como incentivo à assistência às aulas e este incentivo é visível nos resultados obtidos pelos estudantes.
- A participação é também um fim em si mesmo que constitui uma forma de "democratização da democracia". A participação não se justifica apenas pelo aumento da informação disponível e a eficácia na gestão de políticas e iniciativas de desenvolvimento, ela justifica-se por si mesmo, enquanto processo de democratização, como um direito das pessoas, independente do seu efeito positivo ou negativo sobre a eficiencia e eficácia do gasto público.
O broker é então o novo especialista contratado por todas aquelas organizações que estão (ou querem estar) ligados a processos de desenvolvimento. Não obstante, o conceito do broker está associado a vários mitos; esses mitos são bem patentes na selecção da palavra facilitador que foi usada na tradução para português.
Revisão do conceito de facilitador
O primeiro erro associado à palavra de facilitador é que o agente de desenvolvimento deve tomar todas as partes interessadas como iguais. Obviamente reconhece-se que o facilitador tomará a posição de um ou de outro grupo... porque é humano. Com o tempo o facilitador acaba por tomar a posição de todas as partes interessadas equilibrando neutralizando as suas tomadas de posição. Esta posição tomada por uma equipa da FAO em 2003 foi corrigida em 2007 reconhecendo que a desigualdade de poder que se encontram no mundo real exigem que o facilitador tome a posição daqueles que têm menor poder de negociação [3].
Os últimos trabalhos do Serviço de Regimes Fundiários (SDAA) da FAO reconhecem explicitamente a desigualdade de poder entre os actores e a necessidade de abordá-la explicitamente nos processos de desenvolvimento. Desta maneira o equilibrio das relações de poder é uma etapa central do processo de facilitação. Como consequência deste facto, o facilitador não pode ser mais um actor neutro do processo de desenvolvimento; pelo contrário: ele deve ser um actor implicado com aqueles que tem menos poder na mesa de negociação.
Obviamente, somos forçados a reconhecer que o facilitador não resolverá todos os problemas de assimetria de poder nos processos de desenvolvimento em que está implicado; muito menos o facilitador deverá evitar a negociação entre os actores sobre o pretexto das assimetrias de poder. Pelo contrário, o facilitador deverá, por um lado, garantir que a negociação entre actores fracos e actores fortes se dê e, por outro lado, que desta negociação os actores fracos saiam fortalecidos. As duas componentes devem estar garantidas no processo de facilitação.
Sem a primeira é duvidoso falar de desenvolvimento [4]: todo o desenvolvimento implica uma reestructuração das relações sociais, planeadas ou não. Por isso, se não há alteração as relações social não há desenvolvimento. O desenvolvimento como negociação foca-se precisamente nesse aspecto e coloca o processo de negociação entre actores como eixo condutor do processo de desenvolvimento. Segundo, é difícil falar de desenvolvimento se o processo não beneficiou aqueles que mais necessitam. Pode haver desenvolvimento mesmo quando as desigualdades se agravam; a questão é a quem beneficia esse desenvolvimento.
A segunda limitação associada ao conceito de facilitador é a visão do seu trabalho como uma aplicação de técnicas que permitem a construção de um conhecimento colectivo entre os participantes de uma reunião ou workshop. Obviamente as criticas a esta visão são bem conhecidas e dirigem-se aqueles que aplicam as técnicas das Aprendizagem e Acção Participativas (PLA: Participatory Learning and Action) para recolher a informação necessária para elaborar um determinado projecto. Estas ferramentas são úteis em processos continuados onde, com o tempo e conhecimento acumulado, os participantes dirigem o processos de desenvolvimento, enquanto ao facilitador compete facilitar a análise de problemas e tomada de decisões com recurso a tais técnicas. Mas esta critica, embora importante, necessita de ser estendida.
A multiplicidade de iniciativas de desenvolvimento que podemos encontrar numa mesma comunidade tem levado, em todos os lugares, a um resultado comum: o cansaço das organizações em participar em todas as parcerias locais. Pese a que a parceria é uma exigencia cada vais mais forte dos financiadores, ela não tem funcionado para integrar os diferentes projectos das varias organizações intervindo num mesmo local, mas à dispersão do trabalho dos seus técnicos que têm de assistir a um crescente número de reuniões. Ou seja, em vez de aumentar o impacto das intervenções pela integração de iniciativas, terminou por reduzir esse impacto pelo custo do trabalho de planeamento e coordenação que, não obstante, continua a ser ineficaz.
A visão da parceria surgida num workshop participativo em que o facilitador constrói o diagnóstico e o plano de intervenção e, no final, os participantes interessados subscrevem o projecto é uma visão naïfe. Na realidade toda a gente sabe que as reuniões prévias e contactos em privado para fazer um primeiro esboço do plano de intervenção, envolvendo tanto o nível técnico como o político das distintas organizações, são fundamentais para o sucesso da parceria e das iniciativas de desenvolvimento rural. No entanto pouco se tem escrito sobre o assunto nos manuais de facilitação. A redução dos manuais de facilitação a uma colecção de ferramentas de análise de problemas e planeamento participado é um evidencia de como está questão reconhecida por todos não tem sido tratada tecnicamente.
O facto apontado não está desligado da existência de relações de poder e conflito entre as organizações e no interior destas. A adesão a uma determinada parceria têm consequências políticas para o técnico ou dirigente que toma a decisão de aderir bem como para toda a sua organização: está portanto em jogo o equilibro de poderes entre organizações e grupos de interesse como o equilíbrio de poderes dentro de cada uma das organizações. Neste contexto, colocar a transparência como pré-condição das iniciativas de desenvolvimento participativo é tão irrealista quanto inútil. É preciso portanto separar facilitação de processos, isto é, de iniciativas de desenvolvimento, da facilitação dos workshops que fazem parte desses processos. As técnicas do PLA serão úteis no segundo, mas a ausência de respostas técnicas para o primeiro é preocupante.
Não poderei fazer aqui uma análise do papel do facilitador neste contexto: faria falta uma análise psico-social de casos de sucesso e de facilitadores de sucesso para poder fazer esta análise. Não obstante, o facilitador terá de ser, por um lado, o carregador do piano da iniciativa de desenvolvimento. Ele terá de encarar as actividades com um duplo objectivo: concorrer para os objectivos da iniciativa e fortalecer a parceria. Eles estão interligados e o sucesso de ambos é interdependente, mas, nas fases iniciais da iniciativa, o segundo objectivo é muito mais preponderante que o primeiro. Além disso, dado o fraco desenvolvimento da parceria, o facilitador só contará consigo mesmo para por as actividades em marcha. Por essa razão é que afirmo que o facilitador é o carregador do piano.
Por outro lado, o facilitador é aquele que empresta o seu capital social, isto é, as relações com outras organizações, à parceria para garantir o seu desenvolvimento. Obviamente este capital social não é só aquele que o facilitador detêm à partida mas também aquele que ele saberá criar nas fases iniciais da iniciativa. A criação deste capital social é mediado pelas actividades iniciais do projecto, onde a convocação de potenciais parceiros para uma actividade concreta permite pensar e testar as parcerias mais duradouras e estratégicas.
Este tema merece ser tratado neste blog num texto posterior.
O terceiro e última limitação do conceito de facilitador está na correspondência que se faz entre o conceito de facilitador e um individuo dotado de um conjunto de competências técnicas. Uma tentativa de listar essas competências, já feita pelo SDAA/FAO [5], demonstra que a diversidade de competências é tão grande que jamais será possível num só indivíduo. É, no entanto, necessário reconhecer que esta equipa da FAO, desde alguns anos, vem afirmando que o facilitador não é um individuo mas uma organização que consegue reunir as competências necessárias de facilitação através de diversos indivíduos [6].
As exigências a este novo facilitador são diversas: a capacidade de elaborar diagnósticos da região de uma forma aceitável tanto do ponto de vista científico como do ponto de vista dos actores (isto é, de modo a que todos os actores, mesmo conflictivos, estejam de acordo com os principais resultados do diagnóstico e o tomem como ponto de partida para decisões colectivas); a capacidade de criar um capital social em torno da iniciativa de desenvolvimento; a capacidade de facilitar reuniões e workshops (a facilitação tradicional); a capacidade de gerir projectos e actividades; a capacidade de manter uma comunicação fluída entre os parceiros; entre outras. Como se vê, esta facilitação implica uma equipa múltipla, não só no sentido disciplinar mas sobretudo no sentido das competências sociais.
Um bom diagnóstico exigirá do seu executante uma capacidade forte de relacionar-se com a teoria social e os métodos de análise de modo a fazer algo mais consistente que o que é apresentado tradicionalmente: o rigor é o seu valor. Aquele que terá a tarefa de aumentar o capital social da iniciativa de desenvolvimento terá de jogar com a confidencialidade das informações que detêm e com os tempos de entrega de resultados para a obtenção de retornos na forma de compromissos: os prazos são cruciais na sua forma de actuar. Cada uma das competências citadas no parágrafo anterior implicam formas diferentes de actuar e até mesmo formas diferentes de ver o mundo. Por isso mesmo o facilitador não pode ser apenas um indivíduo mas uma equipa de facilitação.
Em jeito de conclusão
O facilitador não é então um individuo que põe em comum os interesses das várias partes interessadas num processo de desenvolvimento levando-os a cooperar e a trabalhar mais eficazmente, mas um broker que carrega a iniciativa de desenvolvimento às costas, quebrando (broking) as adversidades/barreiras com que se depara no processo. Estas barreiras têm tanto a ver com a falta de capacidades (desenvolvimento, no sentido de Amartya Sen) dos actores do sistema onde o broker actua, mas também as relações desiguais de poder que impedem uma parceria se um trabalho prévio não for executado. Mais do que por em comum (facilitar), o broker terá de construir novos processo de desenvolvimento num território
Esta critica lança um desafio: construir novos manuais de facilitação. Estes novos manuais deverão centrar-se naquelas competências que até hoje permanecem mal exploradas. Não fará falta incluir a gestão de projectos nesse manual quando se pode fazer uma referencia o outros já produzidos; o mesmo com a gestão de workshops . Pelo contrário, o como fortalecer o capital social em torno das iniciativas de desenvolvimento é um tema muito pouco explorado nos trabalhos académicos sobre o desenvolvimento rural. A identificação de boas práticas e das condições que contribuíram para o seu sucesso, sublinhado o que pode ser generalizado a outros processos e o que não, deve ser o ponto de partida para a construção deste manual.
Notas
[1] GIDDENS, A; Beck, U & Lash, S (1997). Modernidade reflexiva. S. Paulo: UNESP.
[2] MANSURI, Ghazala & Vijayendra Vao (2004). Community-based (and driven) development: a critical review. Washington: World Bank em www. O documento citado é uma sistematização das avaliações feitas aos programas participativos do Banco Mundial e faz uma boa sistematização dos aspectos mais positivos e negativos da aplicação desta abordagem.
[3] Ver GROPPO, Paolo (2003): El diagnostico territorial participativo hacia la mesa de negociación: orientaciones metodológicas. Roma: FAO em www e ROSSI, Massimo & Carolina Cenerini (2007): A facilitação territorial para o desenvolvimento participativo e negociado. Roma: FAO
[4] Definimos desenvolvimento enquanto processo planeado de mudança, apresentado por MORENO, Luís (1999): "Desenvolvimento rural em obras: dos ramos da abordagem às raízes da utopia". In Carminda Cavaco (org.): Desenvolvimento rural: desafio e utopiaI. Lisboa: Instituto de Estudos Geográficos.
[5] Ver ROSSI, Massimo & Carolina Cenerini, op cit.
[6] Ver o trabalho RAVERA, Federica (2005):Sistematización de un proceso de participación y concertación para el desarrollo territorial en áreas de montaña: la experiencia de la Zona Centro de la Provincia de Huancavelica (Perú). Peru: CEPES & FAO que serviu de base ao modelo de Desenvolvimento Territorial Participado e Negociado do SDAA/FAO em www e também o manual de onde o modelo foi apresentado em FAO (2005): Uma abordagem para o desenvolvimento rural - desenvolvimento territorial negociado e participado. Roma: FAO em www