Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, aprovados pela comunidade internacional, constituem-se como um impulso decisivo para as questões do Desenvolvimento, com a identificação dos desafios centrais a enfrentar pela Humanidade. Um desses grandes desafios concretiza-se no objectivo 3 dos ODM: Promover a igualdade de género e a capacitação das mulheres.
Ora, como reconheceu o próprio Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, “a problemática de género tem estado pouco presente na Cooperação Portuguesa” (Público, 31/05/2006), apontando como razões a concepção de uma “cooperação excessivamente tributária, na qual quase não há ninguém que faça lobby por uma perspectiva de género nas questões de desenvolvimento”. Urge, portanto, “a modernização de estratégias no sentido de trabalhar a igualdade de género de forma verdadeiramente transversal e integrada”, já que as desigualdades de género são uma das principais fontes de desequilíbrio que contribuem para que as mulheres estejam entre os mais pobres e os mais marginalizados.
Sendo certo que nenhuma acção de desenvolvimento é neutra no que diz respeito ao género, torna-se imprescindível incorporar a perspectiva de género de forma transversal, ou seja, orientar o nosso enfoque, de forma constante, para a igualdade entre mulheres e homens. Isto implica sensibilizar a opinião pública e, em particular, os agentes de desenvolvimento e o pessoal técnico das organizações para uma concepção da cooperação que inclua o princípio da igualdade de género como condição indispensável nas intervenções de desenvolvimento.
Significa isto que a cooperação internacional e os seus agentes têm de substituir uma concepção das mulheres meramente como grupo objectivo, por uma concepção em que a igualdade entre mulheres e homens seja um objectivo do desenvolvimento, transversal ao conjunto das políticas, programas e projectos de cooperação. Para tal, é preciso colocar a ênfase na necessidade de incorporar não só a igualdade entre mulheres e homens, mas também o empowerment das mulheres na formulação de políticas, nas metodologias de planeamento, monitorização e avaliação de projectos, nas estruturas institucionais e nos processos de tomada de decisão.
O problema, muitas vezes, é que os conceitos inerentes a uma perspectiva de género ainda não foram cabalmente assimilados e assumidos entre os profissionais da cooperação e do desenvolvimento. Com demasiada frequência se confunde ainda sexo com género, género com mulheres, igualdade com negação da diferença, etc. Para tentar desfazer alguns dos equívocos que têm condicionado os discursos e as práticas ao nível da integração da perspectiva de género, abordarei um conjunto de categorias e conceitos básicos que a abordagem de género utiliza como ferramentas para propor mudanças sobre a realidade[1].>
Uma primeira distinção que importa compreender diz respeito aos paradigmas e pressupostos subjacentes a cada uma das abordagens – MED (Mulheres no Desenvolvimento) e GED (Género e Desenvolvimento) – que têm sido adoptadas no âmbito da cooperação e dos projectos de desenvolvimento. De facto, em Portugal, ainda não está generalizada a distinção, conceptual e prática, entre a perspectiva MED e a novas abordagens GED. Verifica-se, com demasiada frequência, que nos projectos de desenvolvimento continua a considerar-se as mulheres isoladamente, o que resulta de uma abordagem MED, hoje ultrapassada e que vigorou sobretudo nos anos 70.
De facto, foi no princípio dos anos 70 que algumas investigadoras começaram a observar as consequências que tinha para as mulheres o modelo de desenvolvimento então predominante (o crescimento económico como medida e fonte do desenvolvimento), chamando a atenção para o seguinte: enquanto os homens eram integrados nos caminhos do desenvolvimento e apareciam como sector moderno, as mulheres continuavam excluídas e isoladas por uma divisão de papéis que as relegava para o sector tradicional. Como consequência destes primeiros estudos, considerou-se que era necessário integrar as mulheres no desenvolvimento. Isto dá lugar à primeira abordagem, que ficou conhecida por MED (Mulheres no Desenvolvimento), e que teve uma importante influência nas políticas, programas e projectos que se desenvolveram entre os anos setenta e oitenta. Começaram a surgir então os primeiros projectos que integravam as mulheres no âmbito produtivo e não apenas, como até então, em projectos de bem-estar, nos quais as mulheres eram consideradas unicamente pelo seu papel reprodutivo, como intermediárias do bem-estar familiar. No entanto, este tipo de abordagem limita-se ao papel produtivo das mulheres no desenvolvimento, não se baseando em análises globais da realidade das vidas das mulheres.
Entre 1975 e 1985, proclamada pelas Nações Unidas como a primeira Década da Mulher, começaram a desenvolver-se novos estudos. Investigações no âmbito da antropologia adoptaram o termo género como uma categoria para a compreensão da experiência dos indivíduos por sexo. A partir de 85, as considerações sobre o enfoque de Género foram-se estruturando com mais força. A abordagem MED – Mulheres no Desenvolvimento, que consistia basicamente em incorporar as mulheres no desenvolvimento, começou a merecer sérias críticas, surgindo a abordagem GED – Género e Desenvolvimento.
A abordagem GED vem colocar muita ênfase nas relações entre homens e mulheres e preocupa-se em promover intervenções que contribuam para que a posição subordinada das mulheres se modifique. Esta simples definição permite distinguir a abordagem GED da perspectiva anterior, Mulheres no Desenvolvimento, em que basicamente se considerava que as mulheres deviam incorporar-se no desenvolvimento, mas num desenvolvimento já pre-construído e predefinido. A abordagem GED considera que o objectivo não está em incorporar a categoria mulher no desenvolvimento, mas em analisar as relações entre homens e mulheres e o modo como estas condicionam o impacto e a participação de ambos. Esta perspectiva tem em conta uma das denúncias centrais do movimento feminista: as relações entre homens e mulheres são relações de poder e de desigualdade.
Importa agora clarificar uma outra distinção, pois quando falamos dos conceitos de diferença e desigualdade gera-se por vezes alguma confusão. Algumas pessoas consideram que ao promover a igualdade entre homens e mulheres se ignora as diferenças entre os sexos. Mas ao buscar a igualdade, não é a diferença que se pretende eliminar, é a desigualdade. A questão-chave a considerar é quando essas diferenças são convertidas em desigualdades.
A distinção mais elementar trazida pelo enfoque de género é a distinção entre sexo e género. Enquanto o sexo se refere às características e diferenças biológicas que correspondem a homens e mulheres, o género refere-se às construções sociais e culturais que se desenvolvem sobre os elementos biológicos. Por exemplo, o facto de as mulheres poderem dar à luz e amamentar é uma diferença biológica relativamente aos homens. Neste caso, estamos a referir-nos a diferenças que existem ao nível das características sexuais entre mulheres e homens. Mas a questões de género são algo de distinto – são aquelas que são construídas social e culturalmente e que na maior parte das vezes apenas correspondem a estereótipos, como por exemplo “os homens não choram” ou “as mulheres são mais afectivas”. Estas características, que não correspondem a um condicionamento biológico-sexual, têm sido tradicionalmente consideradas como “naturais” e não como formulações construídas socialmente. Esta ideia de construção social é fundamental porque aquilo que é construído é susceptível de ser transformado. Isto é um dos elementos fundamentais trazidos pela perspectiva de género, ou seja, que se podem transformar as desigualdades que se construíram socialmente entre homens e mulheres.
Outra distinção conceptual importante que a abordagem de género acarreta é a diferença entre posição e condição. A categoria condição alude a um dado concreto que descreve uma realidade – por exemplo, a não escolarização das meninas numa determinada localidade. Trata-se de uma condição a que estão expostas essas meninas. A posição, porém, diz respeito à relação que se estabelece entre homens e mulheres nessa realidade, e que tem a ver com as hierarquias de género, nas quais as mulheres ocupam uma posição subordinada relativamente aos homens.
Esta distinção entre posição e condição é muito relevante, porque permite pôr em evidência que muitos dos projectos e intervenções em matéria de desenvolvimento se orientam unicamente para modificar as condições das mulheres, mas não para modificar as relações de subordinação em relação aos homens. Ora, se não se modifica a posição, é muito provável que as condições de subordinação permaneçam ou que as mulheres continuem expostas a desvantagens, desigualdades ou danos.
Muitos dos projectos que se têm implementado nos países em desenvolvimento centram-se frequentemente em aliviar as condições adversas para a comunidade, considerando a comunidade como um todo homogéneo, sem considerar uma diferenciação por género. Estes projectos podem eventualmente contribuir para modificar as condições das mulheres dentro dessas comunidades, mas não avançam no que se considera ser o patamar-chave para poder alcançar a equidade. Isto é, esses projectos não contribuem para melhorar a posição das mulheres, nem para que elas logrem desenvolver a sua autonomia. Muitas vezes, a cooperação internacional tem limitado a sua preocupação às condições de vida das mulheres, sem prestar atenção ao desenvolvimento da sua autonomia e empowerment. Muitos dos projectos concentram-se em identificar as necessidades básicas das mulheres, mas não dão o salto para reconhecer que aquilo que estas necessidades reflectem é um problema de direitos e de poder.
É certo que a abordagem de género é, por vezes, aplicada de modo reducionista. Por ignorância e falta de formação dos técnicos e profissionais da cooperação, alguns projectos contribuem até para agravar as desigualdades entre homens e mulheres. “O problema é que o facto de estar na moda ou ser politicamente correcto tende a esvaziar o conceito de Género, o que se traduz em abordagens pobres e contraditórias com os princípios da emancipação e da transformação social”[2]. Em muitos projectos se considerou que se podia interpretar e deduzir, sem dar atenção à participação das mulheres, o que constituíam os chamados interesses de género. Por este motivo, surgiram correntes críticas contra esta mecanização da abordagem de género.
A abordagem de género implica transformar as relações entre homens e mulheres, implica conseguir que aqueles estereótipos ou papéis atribuídos social ou culturalmente a homens e mulheres, de maneira distinta e geralmente em oposição, e que fomentam a desigualdade, comecem a remover-se. Uma abordagem de género nos projectos de desenvolvimento pressupõe não só ter em conta e atender às questões específicas das mulheres, que quase sempre são invisibilizadas, mas também assegurar que qualquer benefício ou qualquer oportunidade seja igualmente distribuída entre homens e mulheres.
Integrar a perspectiva de género nas acções de desenvolvimento implica ainda a participação das mulheres na concepção e implementação dos projectos, no acompanhamento e avaliação de toda a intervenção. Normalmente, os interlocutores dos agentes de cooperação internacional e dos próprios governos são homens; as mulheres estão muitas vezes excluídas. Além disso, existem diversas áreas nas quais a integração de uma abordagem de género exibe dificuldades. Há muitos técnicos e profissionais da cooperação que não têm sensibilidade para percebem quando nos encontramos diante de uma questão de género que vai significar um dano, risco ou desvantagem para as mulheres. A título de exemplo, recordo que, no âmbito de um curso de especialização em cooperação para o desenvolvimento, um dos projectos apresentados (Recolha e Tratamento dos Resíduos Sólidos Urbanos de Maputo) referia como medidas de promoção da igualdade de género a criação, para as mulheres, de postos de trabalho… nas tarefas de selecção de lixo!!! Neste caso, a não discriminação no acesso ao emprego teria apenas o efeito perverso de aumentar a vulnerabilidade e a inferiorização da mulher, perpetuando as desigualdades…
[1] O que se segue é, em grande parte, adaptado de TAMAYO, Giulia, “Género y Desarrollo en el marco de los derechos humanos”, in Género en la Cooperación al Desarrollo: una mirada a la desigualdad, ACSUR-Las SegoviaS, 2003, pp. 9-19.
[2] ROQUE, Sílvia,“Género e Educação para o Desenvolvimento : quando o invisível e o não dito são o ponto de partida”, abcED - Introdução à Educação para o Desenvolvimento, Fórum DC, 2005.
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